A vida e a luta da jogadora de vôlei Tifanny Abreu vão além das quadras. Primeira atleta trans a jogar em um campeonato de alto nível no Brasil, a Superliga feminina, a oposta e ponteira do SESI-Bauru precisou superar uma infância difícil no interior do Pará, onde chegou a passar fome, até chegar ao sucesso.
Em entrevista exclusiva a Universa, Tifanny falou sobre a transexualidade, os desafios de viver abertamente em um Brasil cada vez mais conservador, atletas trans nas Olimpíadas e a sensação de ter sido a única brasileira a estrelar a campanha mundial de uma marca esportiva ao lado de outros atletas que enfrentaram o preconceito racial e a xenofobia, como os jogadores Paul Pogba e Mohamed Salah, além da cantora Beyoncé.
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UNIVERSA Como você descobriu que era transexual?
TIFANNY ABREU Até os meus 19 anos, não sabia o que era ser uma pessoa trans. Mas, desde criança, eu sabia que estava no corpo errado. Me via no espelho e não aceitava. Assim que eu vi que era possível, comecei a pesquisar sobre o processo de transição.
Eu não tinha noção do poder de um hormônio, de uma testosterona, de um estrogênio. Eu não tinha noção de que isso me transformaria em uma mulher linda, batalhadora e igual a qualquer outra que está na batalha junto comigo. E agradeço que, na época em que comecei a pesquisar sobre o assunto, já existiam muitas informações na internet, grupos de mulheres trans no Facebook, que trocavam informações e indicações de profissionais da saúde para fazer a transição de maneira correta.
Como foi seu processo de transição?
Eu necessitava ser a mulher que eu sou hoje. Quando ainda jogava profissionalmente vôlei masculino, recebi uma proposta para jogar em Portugal. Disputei uma temporada pelo Esmoriz e voltei ao Brasil para jogar pelo time da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pensava muito no assunto da transição e na segunda vez que fui à Europa, em 2011, estava ciente de que naquele ano eu tinha que começar o processo.
Já não aguentava mais viver de teatro para os outros. Para alguns, fazia bem me ver na forma masculina, mas fazia mal para mim. Eu não aguentava mais chorar a noite inteira, não ter relacionamentos. Se eu não me aceitava mais daquele jeito, quem iria me aceitar? Como alguém iria me amar sem saber quem eu era de verdade.
A partir de 2012 deixei o esporte de lado para fazer a transição e fiquei dois anos fora das quadras. Quando você começa o processo, se sente como uma adolescente, pois não sabe como os hormônios vão agir, e isso causa muita insegurança. Sou grata por ter tido muitas pessoas boas que ajudaram na minha transição. Também tive apoio da minha família e isso me fez ser a mulher que sou.
Qual a importância que o esporte tem na sua vida e como ele pode ajudar pessoas trans?
Sempre quis ser uma jogadora de vôlei e alcancei este sonho. Mais do que isso, eu me perguntava como seria possível virar uma mulher trans e continuar jogando. Existe a questão financeira, já que o processo de redesignação sexual custa caro (cerca de R$ 30 mil) e é muito mais difícil quando se precisa da ajuda da saúde pública. O esporte me ajudou muito neste processo e me acolheu.
E ele me ajudou a ser mais resistente, principalmente quando eu comecei a atuar na liga feminina, recebi muito preconceito disfarçado de ciência, de biologia. Quero usar a representatividade que ganhei no esporte para abrir espaço para surgirem mais atletas trans.
O que sentiu quando entrou pela primeira vez como jogadora trans em uma quadra?
Tinha esse sonho desde criança. Quando eu estava no início da transição, fui aprender sobre a prática esportiva de mulheres trans no esporte. E descobri que eu poderia ser feliz no meu novo corpo e ser uma grande atleta, algo que eu já era. Me senti especial a primeira vez que entrei na quadra para treinar como mulher.
Como foi sua adaptação ao vôlei feminino e sua volta ao Brasil, em 2017, para jogar a Superliga feminina pelo SESI-Bauru?
Antes de receber a proposta para vir jogar aqui, um amigo me mandou uma mensagem: "pelo amor de Deus, não venha para o Brasil". Muitas pessoas me aconselharam a não voltar, por ser um país ruim, transfóbico e que mata esse grupo. Mas eu tinha que voltar para lutar.
Se eu deixasse de voltar ao Brasil para lutar, jamais esse país iria reconhecer uma mulher trans como atleta e abrir portas para outras pessoas assim.
Se não tivesse aceitado, eu seria tão ruim quanto as pessoas que me criticam. Dei a cara a tapa. Não foi e não é fácil, mas eu preciso ser forte. O primeiro ano na Superliga foi muito duro neste sentido. Recebi muitas críticas.
Como é sua relação com as redes sociais e como lida com os haters e as críticas?
No início, eu procurava responder mais as mensagens negativas, xingamentos e isso me deixava pior. Logo, percebi que não deveria dar atenção. Mas existem casos de pessoas que eu acredito que façam isso por falta de informação.
Quando alguém me manda uma mensagem para perguntar se eu poderia ou não jogar a liga feminina de vôlei por ser uma atleta trans, eu explico que sim, que há regras para isso e geralmente 99% mudam de posicionamento. Mas sempre tem aqueles que querem causar, te jogar para baixo. Esses eu evito olhar e foco nas pessoas que me dão carinho.
Prefiro pegar as coisas boas e viver com elas.
Na história das Olimpíadas, oito atletas já disputaram os jogos e depois passaram pelo processo de redesignação sexual, como a ex-judoca brasileira Edinanci Pereira. Você acredita que um dia um ou uma atleta abertamente trans dispute o evento?
Acredito que será mais fácil um ou uma atleta atleta trans chegar às Olimpíadas em uma modalidade individual. Para atletas de modalidades coletivas, como o vôlei, é preciso a aprovação de órgãos internacionais e que atestem que o processo de transição está completo. No caso das mulheres trans, é preciso se declarar sob o novo gênero (reconhecimento civil) e ter a quantidade de testosterona controlada para poder competir em equipes femininas. O nível permitido é de até 10 nanomol por litro de sangue nos 12 meses anteriores à competição. Esta é a parte técnica, mas existem outras questões, como a ideologia, a religião e o fato de a maioria dos avaliadores serem homens e mais conservadores.
A Confederação Internacional de Vôlei (FIVB) permite uma jogadora trans por seleção e estou apta. Não fui convocada para as Olimpíadas de Tóquio.
Meu legado maior não é chegar a uma Olimpíada, mas abrir caminhos para novas atletas trans num futuro próximo. Meu desejo é que, cada vez mais, as confederações passem a nos enxergar não como pessoas trans, e sim, como atletas.
Tenho certeza de que, no futuro, esses atletas irão representar o nosso país e sonho com o dia em que vamos ser vistas como uma atleta qualquer, sem polêmicas e ódio.
Você se envolve politicamente em projetos de lei de inclusão e faz críticas aos que podem ser ruins para atletas trans, como o proposto pelo deputado estadual Altair Moraes (PRB - SP) que quer estabelecer o sexo biológico como o único critério para definição do gênero de competidores em partidas oficiais em São Paulo. Qual a importância de se posicionar?
Existem pessoas que nem gosto de falar o nome para não atrair coisas ruins. Acredito que este tipo de projeto de lei não é bom porque mistura religião e ciência, que são coisas diferentes. No meu entendimento, a primeira coisa que a religião ensina é o amor ao próximo. Eu sou amada por Jesus e tenho certeza disso. Até porque eu não teria chegado aonde estou hoje só pela coragem. Eu acredito num Deus de bondade e sigo isso sempre.
Atualmente o projeto de lei 346/2019 está parado e há novas pessoas que trabalham para barrá-lo, como a deputada Erica Malunguinho (PSOL), a primeira mulher trans a ser eleita para um cargo na Assembleia Estadual e da vereadora por São Paulo Erika Hilton (PSOL), que têm lutado pelos nossos direitos.
Como é sua relação com Bauru, cidade tida como conversadora e hoje governada por uma prefeita evangélica e que se identifica politicamente como de direita?
Não costumo julgar o livro pela capa. A Suéllen Rossin (Patriota) é uma prefeita preta, evangélica e de direita e nunca foi contra minha participação na equipe feminina do SESI e nunca falou nada mal de mim. Sobre o fato de ela ser evangélica, há pessoas boas e más em todos os lugares. Eu conheço pessoas que são evangélicas e são maravilhosas, pois pregam o amor. Há outros que não pensam assim, como o deputado que propôs a lei estadual contra os atletas trans. Eu não julgo a religião e sim a pessoa.
Fui muito bem acolhida em Bauru e sou reconhecida quando saio às ruas. É uma cidade que considero minha casa, tenho paixão. Fico muito orgulhosa da cidade de Bauru ser muito acolhedora para pessoas trans. Um exemplo que eu dou é que quando vou aos supermercados, vejo homens e mulheres trans trabalhando no caixa e outros cargos. Essas oportunidades geram dignidade.
Como foi ser a única atleta brasileira a ser escolhida para participar da nova campanha mundial da Adidas (Impossible is Nothing) sobre o poder que esporte tem para mudar vidas ao lado de estrelas mundiais como a cantora Beyoncé, os jogadores de futebol Paul Pogba e Mohamed Salah e a jogadora de basquete Nneka Ogwumike?
Quando recebi a notícia de que seria uma das caras da campanha, fiquei dois dias sem dormir, de tão emocionada e feliz que fiquei.
Pensar que uma pessoa que saiu do interior do Pará e que às vezes não tinha nem o que comer e hoje estar no meio de uma campanha com nomes como Beyoncé é um orgulho muito grande para mim.
Saber que aquela sementinha que plantei lá no passado hoje dá frutos e eu poder representar a comunidade LGBTG+ em vários lugares do mundo. Minha mãe morreu faz um ano e ela sempre foi muito orgulhosa de tudo o que eu conquistei. A mensagem que eu posso passar é: abrace quem você é e sonhos não são impossíveis.